Congresso para; questão indígena não
Em recesso parlamentar, Greenpeace mostra como os direitos indígenas foram abordados no primeiro semestre desse ano pelo Congresso Nacional

Com um primeiro semestre repleto de polêmica acerca da questão indígena, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal pausam suas atividades em recesso de 11 dias, somente retomando as atividades em 1º de agosto. Enquanto a problemática fica no ar, o Greenpeace faz um apanhado do que aconteceu (e do que deixou de acontecer) nesse primeiro semestre de legislatura, trazendo também perspectivas do que está por vir após o recesso parlamentar.
Abril Indígena: a resistência dos povos
Promovida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Semana de Mobilização Nacional Indígena levou mais de 1,5 mil índios para acampar na Esplanada dos Ministérios, às vistas do Congresso Nacional, em abril desse ano. Conhecido como “Abril Indígena”, a mobilização mostrou grande força e poder de resistência dos povos tradicionais contra as iniciativas anti-indigenistas dos parlamentares.
“Os objetivos desse acampamento são denunciar a grave violação dos ataques sistemáticos aos direitos dos povos indígenas, reafirmar os direitos conquistados na Constituição Federal de 1988 e sensibilizar toda a sociedade nacional e internacional para que se juntem e apoiem nossa causa”, discursou Sonia Guajajara, liderança indígena que integra a Apib.
Na ocasião, foi articulada a fala de deputados e senadores no acampamento e também sessões solenes em respeito aos povos indígenas nos plenários da Câmara e do Senado. Entretanto, os indígenas foram barrados na entrada do evento, que seria em homenagem a eles. Uma vez lá dentro, mais constrangimentos como a ausência do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ) e a censura a um filme sobre as lutas dos povos indígenas que seria exibido no ato solene.
Alguns deputados destacaram a importância de uma sessão de homenagem aos povos indígenas, depois de a Câmara ter se fechado aos indígenas tantas vezes. Outros afirmaram que a Casa não fazia mais que sua obrigação e que uma concessão de fato seria o arquivamento de propostas contra os direitos indígenas. Poucos parlamentares participaram da sessão; quase todos presentes eram membros da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas.
PEC 215/2000: paralisação das demarcações
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que dá ao Legislativo o direito de apreciar as demarcações de áreas indígenas, tramita na Câmara há 15 anos sem nunca ter levado em consideração a opinião dos povos tradicionais. Atualmente o texto está sendo analisada por uma Comissão Especial da Câmara, que é presidida pelo deputado Nilson Leitão (PSDB/MT), investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) por atuar contra os indígenas.
Caso aprovada, a alteração significaria, na prática, a paralisação de todos os processos de homologação de terra, uma vez que mais da metade de um total de 513 deputados defende os interesses do agronegócio.
Em abril desse ano, o diretor substituto da Fundação Nacional do Índio (Funai), Jaime Siqueira, disse em audiência pública no Congresso que o órgão é contrário à proposta, uma vez que o Legislativo abriga “muitos interesses contrários aos povos indígenas”. Ele pediu que as demarcações sejam mantidas com o Poder Executivo, e realizadas pela Funai. “Há uma situação bastante adversa para defender o interesse indígena. Há uma visão deturpada e preconceituosa sobre o índio”, afirmou ele.
A deputada Janete Capiberibe (PSB/AP) também denunciou os interesses da bancada ruralista: “a Friboi elegeu 160 deputados aqui na Casa. Vocês acham que eles vão defender os direitos tradicionais? Vão sim é defender as patas do boi, o agronegócio”.
Outros consideram a transferência da criação de Áreas de Proteção do governo para o Congresso Nacional totalmente inconstitucional, como a representante do Tribunal do Trabalho, Noemir Porto. “O deslocamento de leis constitucionais só pode ser feito para ampliar direitos. Do contrário, é inconstitucional. E a PEC 215 é bem clara quanto seus objetivos”, atestou Porto em maio desse ano.
Na mesma ocasião, Deborah Duprat, subprocuradora-geral da República, disse que a Câmara dos Deputados é hostil à presença de indígenas e quilombolas que vão ao Congresso para acompanhar discussões sobre iniciativas como a PEC 215. Segundo ela, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) determina que antes de qualquer medida legislativa que impacte os povos indígenas, eles sejam ouvidos. “No entanto, não se permite o ingresso dos povos indígenas nas diversas comissões onde se discutem os inúmeros projetos de lei que dizem respeito aos seus interesses”, disse Duprat.
Entretanto, no final de maio, o Senado deu um importante passo para barrar a PEC 215. De um total de 81 senadores, 48 assinaram um manifesto contra a proposta da Câmara. A iniciativa foi articulada pelo senador João Capiberibe (PSB/AP), que em entrevista exclusiva para a reportagem do Greenpeace, classificou a PEC como uma “sandice política”.
Como o Senado é responsável por revisar e aprovar as leis e propostas da Câmara dos Deputados, o cenário ficou favorável à causa indígena. No entanto, o deputado Nilson Leitão pode colocar a PEC 215 em votação no segundo semestre desse ano.
PL 1610/1996: índio garimpeiro?
Com o enfraquecimento da PEC 215, foi reinstalada em junho uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados para proferir parecer ao Projeto de Lei (PL) 1610, que dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas.
O texto é analisado desde 1996 pelos deputados. O projeto já passou por diversas Comissões, como a de Minas e Energia e a de Meio Ambiente. No entanto, pareceres contrários travaram sua aprovação e arrastaram o processo até os dias de hoje. Agora o texto tramita em regime de prioridade.
O presidente da Comissão é o deputado Índio da Costa (PSB/RJ), que demostrou desconhecer o que é a PEC 215 e a Convenção 169 da OIT. Para ele, “o direito de exploração mineral não quer dizer a obrigação [da exploração]. Não estamos tirando nenhum direito dos índios, e sim ampliando. Os que quiserem autorizar a exploração em suas terras, terão suas terras exploradas”
Com essa afirmação, o deputado se esquece dos processos de licenciamento de diversas usinas hidrelétricas, rodovias e empreendimentos de infraestrutura que ignoraram solenemente a participação dos povos indígenas. Então como ele pode afirmar que só haverá exploração onde os indígenas autorizarem?
Para Carlos Bittencourt, historiador e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), esse projeto de lei seria a “batalha final contra os povos indígenas, muito próximos de um etnocídio completo”. O historiador considera absurdo votar a abertura de territórios indígenas para mineração antes de votar o Estatuto dos Povos Indígenas.
PL 1216/2015: mais uma frente de ataque ruralista
De autoria do deputado Luís Antônio Covatti (PP/RS), o Projeto de Lei 1216 pretende adequar o processo de demarcação de territórios indígenas à Portaria 303/2013, da Advocacia Geral da União (AGU).
Entre diversas restrições aos direitos indígenas, o projeto propõe a instituição do “marco temporal” para definir a ocupação indígena, ou seja, só seriam considerados de posse indígena os locais ocupados pelas comunidades na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Segundo a proposta, a expulsão dos índios de seus territórios em período anterior a essa data – inclusive na ditadura militar – retiraria o seu direito à demarcação.
Para Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a partir dessa interpretação, “os povos que foram expulsos de suas terras e, por este motivo, não estavam na posse física delas na data da promulgação da Constituição de 1988, e que não estavam em guerra ou disputando judicialmente essa posse com os invasores na mesma ocasião, teriam perdido o direito sobre suas terras”. Segundo Buzatto, isso legitima e legaliza as expulsões e demais violações cometidas contra os povos indígenas do Brasil.
O PL 1216 está em tramitação desde junho desse ano e segue em regime ordinário.
PEC 71/2011: a proposta “amiga”
Criada pelo Senado, essa Proposta de Emenda Constitucional visa indenizar as pessoas detentoras de títulos de terra em territórios declarados indígenas até a data da promulgação da Constituinte, em 5 de outubro de 1988.
A muitos produtores foram oferecidos pedaços de terra pelo governo na época da ditadura militar, e estes as ocuparam de boa fé, mesmo sendo territórios indígenas, pois tinham o aval do poder público. Mas em muitos outros casos, invasões possessórias colaboraram para expulsar povos tradicionais de seus territórios, e as ocupações foram feitas de maneira ilegal.
O texto de autoria do senador Paulo Bauer (PSDB/SC), no entanto, estipula o pagamento indenizatório apenas aos proprietários que comprovem a boa fé, o que pode ser difícil de identificar.
No geral, a proposta pode ser positiva ou negativa, a depender dos caminhos que se escolha. É claro que ao indenizar esse proprietário, o território fica livre de conflito e os indígenas podem voltar a ocupá-lo sem risco de novas disputas. Mas, segundo Mauricio Guetta, advogado do Instituto Socioambiental (ISA), “independente de ser a favor ou contra as indenizações para proprietários de boa-fé em terras indígenas, há duas questões relevantes a serem alteradas no texto original, sob pena de inviabilizar todo o sistema e, principalmente, travar a demarcação de terras indígenas no Brasil, a exemplo do que se pretende através da PEC 215″.
“A primeira é não se permitir o pagamento retroativo de indenizações, seja por questões jurídicas impeditivas, seja pelo fato de que o governo não teria o montante necessário. A segunda é permitir que o pagamento seja feito em outras modalidades e títulos que não sejam em dinheiro. Caso contrário, o proprietário vai demorar anos para receber sua indenização e se negará a deixar a terra, impedindo a efetiva demarcação e ocupação indígena”, explica Guetta.
Portanto, o que se estuda é modificar o texto para permitir que o pagamento seja feito em títulos de reforma agrária. Entretanto, a mudança ainda não foi feita e a PEC 71 já está no plenário do Senado para votação. Mais uma questão para ficar atento, pois o tiro pode sair pela culatra.
Nos próximos capítulos…
O recesso termina no primeiro dia de agosto, e as atividades parlamentares prometem voltar com tudo na segunda metade do ano.
Novas manifestações, organizadas pela Mobilização Nacional Indígenas, devem acontecer em agosto e setembro, antecedendo a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, programada para novembro.
Sobre os trâmites legislativos, Mariana Mota, assessora de políticas públicas do Greenpeace, comenta que o Congresso é um ambiente imprevisível e o contexto político pode mudar a qualquer momento, ainda mais se levar em conta as investigações de corrupção que podem tirar políticos de cargos estratégicos. Mas é possível afirmar que “como a atual legislatura permanece com maioria ruralista e conservadora, os direitos indígenas serão novamente alvo de ameaça no segundo semestre por essa série de projetos citados e tantos outros que tramitam na Câmara e Senado”.
Na opinião de Danicley de Aguiar, da campanha de Amazônia do Greenpeace, “a bancada ruralista deve forçar um acordo em torno da PEC 71, sob pena de votarem a PEC 215 na Comissão Especial, dando continuidade a lógica de fazer vale os interesses do agronegócio sobre qualquer outro, seja ele indígena ou não. Ainda que no campo das teses, de uma maneira ou de outra, a bancada ruralista vai acelerar as iniciativas para reduzir os direitos dos povos originários, invocando o ‘progresso’, assim como fizeram os que aqui desembarcaram em 1500”.
O Greenpeace seguirá acompanhando as tramitações de perto, sempre no intuito de defender os direitos indígenas e informar a população. Acompanhe em nosso site as notícias do Congresso Nacional e confira se seu deputado está atuando pela defesa das minorias e dos povos originários do Brasil.
Fonte: Greenpeace Brasil