No Pará, pescadores reivindicam seguro-defesa para preservar o caranguejo-uçá
Na Resex Caeté-Taperaçu, em Bragança (PA), os caranguejeiros param por seis semanas a pesca do crustáceo, mas não têm compensação e vivem com dificuldades.

Gessé da Silva Martins, de 48 anos, soma nos dedos das mãos os ofícios que exerce na vila do Meio, no município de Bragança, no nordeste do Pará: eletricista, pedreiro, carpinteiro, marceneiro, pescador, tecedor de rede e coletor de caranguejo. “Eu sou um tipo de pessoa assim: pra tudo quanto é canto eu tenho meu serviço”, diz ele, no quintal de casa, à sombra de uma mangueira de onde pendem redes de pesca tecidas pelo multiprofissional. A atividade que ficou no dedo mindinho é a que lhe rende ganhos todos os dias, algo que Gessé considera como o lado bom de trabalhar com a pesca do caranguejo. Mas é também a que gera mais demandas, dentre as quais está o acesso a alguma forma de auxílio para o período de defeso do caranguejo-uçá (Ucides cordatus).
A vila do Meio fica nas proximidades da comunidade de Bacuriteua, na zona rural de Bragança, o maior polo pesqueiro do estado, a cerca de 216 km da capital Belém. Sua população está diretamente envolvida com a Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, unidade de conservação federal criada em 2005. Com um total de 41.807 hectares, cerca de 19% da área de Bragança, a Resex foi concebida para “proteger os meios de vida e garantir a utilização e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela população extrativista”, diz o decreto que institui a unidade de conservação. Às margens do rio Caeté, que conecta Bragança ao oceano Atlântico, a unidade é composta por áreas costeiras-esturinas e manguezais, além de restingas, dunas, praias e ilhas. Como lista o plano de manejo da Resex, as principais atividades econômicas são a pesca de espécies de peixes e caranguejo. O Pará detém a maior faixa de mangue do Brasil.
Foi na Resex Caeté-Taperaçu que Gessé cresceu e aprendeu a lida com o caranguejo-uçá (Ucides cordatus) vendido em cambadas – enfiados ou amarrados em um fio de pedaço de pau ou gancho. De sua casa ao mangue, são cinco quilômetros, percurso que inicia por volta de 6h30. Ele trabalha de cinco a sete horas por dia. Neste período do ano, o verão amazônico, “quando o caranguejo está gordo”, como explica, ele captura cerca de cinco cambadas do uçá – 70 unidades – e vai às portas da clientela na zona urbana de Bragança. “Vendo cada cambada de 20 a 25 reais. Mas eu não vendo pra marreteiro porque paga muito pouco”, completa Gessé. Ele se refere a um dos atravessadores da cadeira produtiva do caranguejo.

(Foto: Klewerson Lima/Amazônia Real)
Nos três primeiros meses do ano, influenciado pelas luas cheias e novas, ocorre o suatá ou “andada” dos bichos, como é conhecido o período de reprodução da espécie. Para resguardar o acasalamento, os coletores não fazem a captura por um período que, em 2018, foi de seis semanas, mas em 2021 de apenas quatro. Gessé e outros profissionais ficam sem renda. “Os caranguejeiros ficam parados. Então, por que não dar [o governo] pelo menos uma cesta básica? Pra se sustentarem, pra não irem para o mangal?”, indaga. “Ou um seguro-defeso, por que não? Podia ser da prefeitura, do governo do Estado, do governo federal.” No ano de 2022, o defeso vai durar cinco semanas.
Os efeitos da pandemia

(Foto: Klewerson Lima/Amazônia Real)
Em março de 2020, a pandemia de Covid-19 também sacudiu as atividades na Resex Caeté-Taperaçu, mas os caranguejeiros se mantiveram e vêm atravessando os tempos turbulentos. “Nós, caranguejeiros, tiradores, coletores, não fomos afetados porque, o nosso caranguejo, a gente entrega direto nas casas ou vende para atravessador”, explica Gessé. “Já o atravessador, ele leva pra Belém, Castanhal, Paragominas. Aí ele teve dificuldade de vender”, diz. Para essas cidades, é distribuído o caranguejo vivo.
Mas o produto chega ainda mais longe, especialmente a polpa do crustáceo – carne retirada das patas do animal. De Bragança, a “massa” desembarca no Nordeste e até mesmo na capital Rio de Janeiro. Não chega a ser um espanto, considerando que Maranhão, Pará e Amapá concentram cerca de 80% das áreas de manguezais do Brasil; e o Pará é um dos maiores exportadores. Os caminhos da produção bragantina são alguns dos apontamentos contidos na pesquisa de mestrado do engenheiro de pesca John Gomes, que também é coordenador do projeto Mangues da Amazônia. A iniciativa, que é realizada pelo Instituto Peabiru e pela Associação Sarambuí, tem o objetivo de promover ações socioambientais e de conservação do manguezal no litoral paraense. O projeto tem patrocínio da Petrobras.
Segundo modelo proposto por John Gomes em sua pesquisa, o caranguejo vivo oriundo das vilas bragantinas chega a municípios paraenses como Belém, Marabá e Tucuruí, e até mesmo ao Maranhão. Já o caranguejo beneficiado, a polpa ou massa, é escoada a Belém e Santarém, no Baixo Amazonas, mas também aos estados do Amazonas, Bahia, Ceará, ao Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma cadeia que possui seis níveis de agentes: produtor primário, atravessador primário, atravessador secundário, marreteiro, supermercado, restaurante ou empresa de beneficiamento, e consumidor final.
Para garantir a manutenção do uçá, a adoção de um período de defeso também foi apontada como solução pelo projeto Mangues da Amazônia. Iniciado em 2021, o levantamento procura “conhecer a realidade das comunidades, identificar problemáticas e demandas”, explica a coordenadora da ação, a engenheira ambiental Indira Eyzaguirre. O diagnóstico envolve a comunidade de Caratateua, uma das mais de 50 que fazem uso da Resex Caeté-Taperaçu.
“A principal demanda dos adultos é pensar na saúde, porque sofrem muito pelo esforço físico. E outra é pensar em ajuda para a época de defeso, porque não podem ir pescar, e não acessam o auxílio-defeso”, afirma Indira. Mas as questões mudam conforme a faixa etária. Adolescentes e jovens, por exemplo, falam da necessidade de promoção de cursos técnicos na comunidade, já que, à medida que avançam na vida escolar, são obrigados a deixar as vilas para ter acesso à educação.
Na beirada do rio Caeté, na comunidade de Caratateua, o pescador Miguel Farias Corrêa, de 43 anos, atracava no trapiche da vila do Meio. Era uma tarde de sábado de julho e os paneiros tecidos em fibra de plástico estavam carregados de pescadas. “Siri a gente também pega”, diz Miguel, que arrumava os apetrechos de pesca enquanto Manoel Martins, o Seu Duca, recebia a produção para vender na vila.
Do outro lado do trapiche, Arrepiado, como é conhecido o pescador Carlos Santos, reclamava do aumento de preços. “Não compensa. Tudo caro. Os preços das comidas. A gente pesca e aí vem pra comprar outras comidas, carne, frango, e não compensa.” Ambos os pescadores dizem que não tiveram problemas para trabalhar durante a pandemia de Covid-19, mas a carestia dificulta a vida.
As luas do caranguejo-uçá

De janeiro a março, é tempo de o caranguejo encontrar a condurua – nome atribuído à fêmea da espécie em Bragança – ou condessa, como também é conhecida. Esse é o período da andada na região Norte, quando o caranguejo sai da toca em semanas intercaladas: os machos das patas cabeludas andam no mangue sob a luz do luar para encontrar as fêmeas que bailam nas pontas das unhas. “Tem um ciclo definido. As andadas ocorrem nas luas cheias e novas”, explica o biólogo Darlan Simith, que tem mestrado e doutorado em biologia ambiental. “Se hoje é dia de lua cheia, de amanhã até mais cinco dias, o caranguejo vai andar no manguezal para acasalar com a fêmea.”
Com base nesse ciclo, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) publica as portarias que proíbem a captura dos crustáceos, permitindo a renovação da espécie. Mas é possível ser mais exato na definição do período reprodutivo, já que o macho ainda “escolhe” as luas em que efetivamente vai sair da toca para acasalar. Com esse propósito, foi criada a Rede de Monitoramento das Andadas do Caranguejo-Uçá (Remar), que reúne pesquisadores dos estados brasileiros com manguezais. Fundada em 2013, a Remar estuda as andadas do caranguejo, estimando períodos e quantitativo dos animais, junto da participação da população que pode inserir dados por meio de aplicativo. O resultado foi um modelo que prevê quais serão as semanas corretas em que o bicho vai andar.
“Foi possível observar um padrão. E agora a gente consegue prever a lua que ele escolhe para andar”, explica Darlan. “Se a maré mais alta ocorre na lua cheia em determinado ano, no ano seguinte o caranguejo vai escolher essa mesma lua para fazer a cópula. O Mapa e o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] já estão usando as nossas previsões.”
A portaria Mapa nº 325/2020, que proíbe a captura, o transporte e industrialização do crustáceo do Amapá à Bahia, já incorpora um padrão mais acurado que vai até o ano de 2024. Para 2021, a portaria prevê a andada em quatro períodos de seis dias, de janeiro a março, totalizando 24 dias: uma lua nova e três luas cheias. Com isso, na avaliação de Darlan, se reduzem os conflitos com os pescadores, já que assim é possível delimitar o tempo de proibição da pesca somente para as semanas em que o caranguejo efetivamente vai se reproduzir.
Mais uma questão a se responder e se consolidar na legislação é o período de “muda” do caranguejo, definida pela ciência como ecdise. De outubro a dezembro, os animais estocam vegetais e se entocam nas galerias para fazer a troca da carapaça. Nesse intervalo, estão com o casco mole e, também, com um líquido esbranquiçado – o que dá origem ao termo “caranguejo de leite”. São meses em que os animais estão fragilizados, resultando em maior mortalidade devido à captura e transporte. Por ficarem fora do alcance dos braços dos catadores, usa-se o gancho, petrecho de ferro para captura, o que pode causar lesões e mortes dos animais. Além disso, não suportam o peso das cambadas, perecendo a caminho dos consumidores. “O ideal seria o defeso para o período de troca também. Isso garantiria a manutenção do ciclo reprodutivo do caranguejo”, defende o biólogo Darlan Simith.
Os caminhos legais

(Foto Fernando Sette Câmara/Agência Pará/Divulgação)
Com o defeso, caranguejeiros deveriam fazer jus ao seguro-desemprego para pescadores artesanais. Mas, diferentemente de outras regiões do país em que essas comunidades tiveram acesso ao auxílio, a categoria dos estados do Pará e Amapá não recebe nenhum tipo de subvenção. “Isso é uma luta deles que já vem de muito tempo. Só que o seguro em si, o direito de receber o seguro, os requisitos e critérios, nunca foram informados para eles. Mas o direito existe, é dado a eles”, explica o pesquisador Wilson Sampaio, que atua no campo do direito ambiental há cerca de dez anos.
“A lei em si é omissa, não deixa claro que eles [pescadores de caranguejo] devem receber”, avalia Sampaio, se referindo à Lei nº 10.779/2003, que instituiu o seguro-desemprego durante o período do defeso. Para a legislação em vigor, o usuário do benefício é o “pescador artesanal ou a este assemelhado, que faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida”. Em outros estados e até mesmo no Pará, contudo, “vários juízes federais deram ganho de causa ao pescador de caranguejo”.
Uma ação partiu do Ministério Público Federal (MPF), iniciada em 2013 e concluída em 2018, denunciava que os trabalhadores não recebiam o benefício. O MPF também cobrou, por meio de ofícios, a superintendência regional do Ministério do Trabalho e Emprego no Pará, mas não obteve resposta. O entendimento do juiz federal substituto da 1ª Vara de Belém, Henrique Jorge Dantas da Cruz, foi o de que os conceitos de pesca e de pescado não estão restritos a espécies de peixes, incluindo também crustáceos, como o caranguejo.
“Assim sendo, os catadores de caranguejos, para todos os fins legais, devem também ser considerados pescadores e, consequentemente, detentores dos mesmos direitos”, confirma a decisão do juiz federal, que abrange os profissionais dos municípios de Salinópolis, São João de Pirabas, Quatipuru e Primavera, todos no nordeste paraense. Ainda assim, o benefício não vem sendo pago “porque a União e o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] recorreram contra a sentença”, informa o MPF no Pará. Além disso, a Justiça Federal “não concedeu o pedido do MPF para que a sentença fosse cumprida provisoriamente até que esses recursos sejam julgados”.
No processo, a União argumenta que os pescadores de caranguejo não podem ser considerados pescadores artesanais “porque não utilizam embarcações no exercício de seu ofício” e, além disso, “porque o prazo do defeso é de apenas seis dias”, diz nota enviada pelo MPF.
O INSS, por sua vez, alega que, para pagamento do seguro-desemprego é preciso o prazo mínimo de 30 dias, “o que não ocorre nos casos de pescadores de caranguejo”. O INSS ainda alega que a possibilidade de estocagem do produto não habilitaria a categoria receber o direito.
Se houver uma decisão favorável ao pagamento do seguro-desemprego aos caranguejeiros, o benefício se estenderia à categoria em todo o estado do Pará.
É preciso uma política pública de “comunicação dos direitos”, avalia Wilson Sampaio, que realiza pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Ambiental, no campus de Bragança da Universidade Federal do Pará (UFPA). As dificuldades não se restringem ao acesso ao seguro-desemprego. “Eles têm direito a aposentadoria, licença-maternidade para as marisqueiras, auxílio-doença. A legislação trabalhista de maneira mais ampla”, lista ele. “Eu estou no começo da pesquisa, mas já consegui visualizar a falta de comunicação com instituições públicas, como ICMBio e prefeituras, e a negativa de direitos porque falta informação. Eles não sabem como fazer para receber. Eles ficam perdidos em meio a desinformação e falsas denúncias.”
O que dizem as autoridades

(Foto Fernando Sette Câmara/Agência Pará/Divulgação)
Desde 2007, apenas na Câmara dos Deputados, há registro de tramitação de pelo menos sete projetos de lei que visam a ampliação de beneficiários do seguro-desemprego para pescador artesanal – o que incluiria o pescador de caranguejo. Dois deles partiram de representantes do Pará, Elcione Barbalho (MDB) e Zenaldo Coutinho (PSDB). O mais recente foi apresentado em 2020 pelo deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR). Nenhum deles, porém, assegurou em lei a extensão do direito aos caranguejeiros.
Ao INSS, a agência Amazônia Real perguntou quantos caranguejeiros recebem o seguro-desemprego no estado do Pará e a quantidade de beneficiários em todo o país. O instituto, porém, se limitou a informar, por meio de nota, “em realidade, o seguro defeso para pescadores artesanais que pescam caranguejo só existe na região Nordeste”.
A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap) e a prefeitura de Bragança foram questionadas sobre o número de pescadores de caranguejo no município de Bragança e se há alguma forma de auxílio direcionado à categoria no período do defeso. Até o fechamento desta reportagem, não foram enviadas respostas.
A luta por direitos das mulheres

(Foto: Klewerson Lima/Amazônia Real)
Sobre o trapiche da vila do Meio, a reportagem encontrou uma das líderes da comunidade Caratateua, Adriene Paixão, 42 anos, envolvida na luta por direitos, desde questões socioambientais da Resex a discussões de gênero em grupos de mulheres. “Sou de Caratateua, zona rural, ribeirinha, pescadora”, se orgulha Adriene. À beira do Caeté a vida inteira, ela fala com propriedade sobre os desafios da Resex, já que foi uma das que esteve à frente da mobilização pela instituição da unidade de conservação no início dos anos 2000. Unindo outras comunidades, percorreu o litoral paraense mobilizando a discussão sobre reservas extrativistas. “De início, a preocupação em criar a Resex era justamente a preocupação ambiental”, reconta a pescadora. “O acordo incluía a questão do lixo, queimada, pesca e tipo de petrecho. Então, a mudança de lá pra cá foi muito grande.”
A “parada do caranguejo” na comunidade, diz ela, piora desigualdades nas relações de trabalho. “O caranguejeiro sai pro mangue e já fica devendo na taberna o feijão, o charque, a cachaça dele, o tabaco, o arroz, a comida que ele deixou pra esposa e pros filhinhos”, comenta. “Quando chega de volta, às vezes aquele patrão do comércio já compra o caranguejo dele. Às vezes, só dá pra pagar a despesa do dia.” A pergunta de Adriene é a seguinte: quando vem o período do suatá, em que o pescador terá de manter a mesma relação, “ele vai comer o quê?”
A pergunta vai da pesca do caranguejo às espécies de peixes. Para Adriene Paixão, é preciso conhecer os ciclos de espécies aquáticas, como é o caso da pescada amarela (Cynoscion acoupa). “A gente reclama muito do povo pescar a pescada no período da desova. Mas como a gente vai trazer um defeso, o seguro-desemprego da pescada amarela, se não tem uma pesquisa pra dizer quando ela vai desovar?”, argumenta. A solução, para ela, é que a presença de pesquisadores esteja mais voltada para as demandas das comunidades. “Eu sempre falo isso para os doutores que fazem pesquisa sobre pesca: tragam retorno, porque sem pesquisa, sem retorno, a gente não consegue mudar.”
Por: Moisés Sarraf
Fonte: Amazônia Real