O Agro quer seguro rural, mas precisa mesmo é do Código Florestal
Sem cumprir as leis ambientais e sofrendo com mudanças climáticas, lideranças do Agro se mobilizam para ampliar o seguro rural com dinheiro público. Rios e florestas seguem em agonia. Moro já aderiu
O mundo Agro está em campanha. Com letra maiúscula mesmo, aquele Agro da televisão, das caminhonetes e aviões, dos dólares, tech, pop, tudo. Estão possivelmente vislumbrando um último grande ato do governo Bolsonaro, que tem topado até os pedidos mais indecorosos do setor. Ou, talvez, já fixando o seu preço para a corrida eleitoral que começa no segundo semestre, embora antecipada pelo atual presidente ainda em 2018.
Sérgio Moro nem quis esperar para saber qual seria o caso. Embarcou.
Em artigo no Poder 360, escrito a 4 mãos com seu assessor para a campanha eleitoral, Xico Graziano, Moro declarou “todo o apoio ao Agro” que “precisa ser protegido de eventos climáticos extremos”. O motivador é a forte estiagem que arrasou os pastos e as lavouras de milho e soja no sul e centro-oeste do Brasil e deixou um prejuízo estimado em 45 bilhões de reais. Tal sofrimento já não é novidade e a própria ministra Tereza Cristina, em visita aos afetados na semana passada, comentou que algumas regiões do Sul estão perdendo a terceira safra consecutiva. As perdas expressivas acendem um sinal de alerta de que o agronegócio brasileiro não está preparado para fazer frente às rápidas mudanças ambientais que se sucedem e que, tudo indica, vão piorar.
A solução apresentada por Xico e Moro, entidades do setor e até editoriais de jornalão, é tão simples quanto pode ser: seguro rural. Os seguros são tendência em todo o mundo e têm se mostrado cada vez mais relevantes à medida em que se deterioram as condições climáticas e ambientais que vinham garantindo por décadas a produtividade na lavoura. Com ele, o agricultor se protege financeiramente de eventos climáticos específicos (geadas, alagamentos, granizo) e/ou de perdas na produtividade por fatores difusos. Adquire, assim, capacidade de recuperação frente a perdas inesperadas de um ano “atípico”.
O seguro da lavoura tem uma peculiaridade importante: se você os fornece em escala local ou regional, basta um único evento climático para arrasar todos os seus clientes de uma vez – uma enchente, uma geada, uma onda de calor. De uma hora para outra, estão arruinados segurador e segurados. As soluções que o mercado dá são nacionalizar a oferta, aproveitando a dimensão continental do Brasil – a região em que o clima “vai bem” cobre o prejuízo de onde o clima “vai mal”; e elevar os prêmios (custo de contratação) ao produtor por conta das crescentes incertezas na previsão do clima em tempos de emergência climática. As séries históricas e tendências de longo prazo estão cada vez menos ajustadas às observações atuais.
É aí que entra o Estado, que atualmente custeia de 20% a 40% do investimento total e até R$ 120 mil por produtor pelo Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). O recurso, obviamente, não é empréstimo. Ele jamais retornará aos cofres públicos para ser investido em saúde, educação ou adaptação às mudanças climáticas.
Na outra ponta, a expansão de áreas agrícolas é desejada para criar uma “sobra” que compensaria as perdas para o clima. Na prática, grosso modo, a região onde o atual modelo de monocultura exportadora se expande é o MATOPIBA e o norte de Minas Gerais, regiões predominantemente de Cerrado. No arco amazônico que abrange Acre, Amazonas, Rondônia, Mato Grosso, Pará e Maranhão, se expande a fronteira da pecuária, empurrada para o interior do país pelas vastas monoculturas. Ambos avançam com índices recorde de desmatamento, violência rural, invasão de terras públicas e a benevolência das principais lideranças do Agro.
Com a expansão assegurada e o seguro rural expandido, a demanda do Agro é atendida e o produtor que perde em um ano está de volta ao jogo no ano seguinte – nem que seja para perder mais uma vez. Com o dinheiro do governo, o modelo se sustenta e, em conjunto, todo mundo ganha.
Parece ter lógica, mas o arranjo joga para debaixo do tapete um ponto fundamental: os tais eventos climáticos extremos não ocorrem por geração espontânea e seus efeitos são decisivamente agravados pelas decisões que tomamos no território.
Se globalmente a queima de combustíveis fósseis é ainda o fator mais importante, nossa contribuição para o colapso do clima é a agropecuária, responsável por 73% das emissões de gases de efeito estufa – tanto pelo desmatamento que induz (46%) quanto pelas atividades produtivas (27%). E, mais relevante ainda no contexto atual, mais do que para de emitir, precisamos adaptar nossas estruturas e modelos produtivos para criar uma real proteção contra os eventos climáticos extremos.
Há uma relação direta entre manutenção de vegetação nativa e ecossistemas íntegros e a produção de água, aumento da umidade e redução da temperatura. A cobertura vegetal protege o solo do impacto das gotas de chuva e reduz o escoamento da água. As raízes retêm partículas de terra e abrem caminho para a infiltração da chuva. O sombreamento mantém o solo frio e úmido e protege os lençóis freáticos. Em áreas de recarga de aquíferos é a vegetação nativa que regula o quanto de água vai infiltrar e o quanto de solo fértil não será levado pela correnteza. Na beira dos rios, as matas ciliares seguram o barranco, evitam a entrada de poluição, reduzem a evaporação e controlam o pulso das enchentes ao segurar a água que entra e sai. Rios assoreados pelo solo carreado se tornam mais rasos, mais lentos, com mais água exposta ao sol, começam a invadir áreas maiores nas cheias, ficam menos previsíveis e mais destrutivos. Nascentes protegidas pela mata e recarregadas pela infiltração jorram com força o ano inteiro. Rios sem proteção crescem de maneira destrutiva na cheia e morrem na seca. Florestas atraem chuvas a grandes distâncias e as alimentam com sua própria umidade. Solos cobertos têm temperatura média vários graus mais baixa que o de áreas abertas. Está tudo no dia a dia de quem vive no campo e depende de umidade, chuvas e boa temperatura para produzir. Quem pensa o Agro não conhece nada disso.
Em 2012, os setores mais reacionários do Agro se juntaram para reescrever o Código Florestal, que também é chamado de “lei da água” por tratar da manutenção de florestas particulares com foco especial em beira de rios, nascentes, áreas de recarga e topos de morro que impactam diretamente a produção e qualidade da água. Os cientistas foram expulsos do Plenário, das Galerias e do Salão Verde da Câmara enquanto deputados distribuíam anistia a quem desmatou à beira dos rios, permitiam compensações improvisadas de reservas legais e permitiam pedaladas na contabilização das áreas preservadas. O Congresso designou que o tamanho mínimo das matas que protegem os cursos d’água deveria depender não das características geológicas e ambientais da bacia, mas do tamanho da propriedade, quem é o seu dono e por quanto tempo a área é ocupada.
Passados quase 10 anos deste Novo Código Florestal, sequer o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi concluído. Este grande Cadastro das propriedades com as respectivas reservas, matas ciliares, rios, nascentes e áreas produtivas nos daria uma condição única de compreender como o território brasileiro ficou organizado após esses 522 anos de disputas sangrentas pela terra e guerra à natureza. Permitiria entender quem cumpre e não cumpre a lei e quem poderia ser mobilizado para ações de restauração florestal. Ajudaria a resolver brigas fundiárias intermináveis e prevenir os conflitos que estão crescendo como nunca. Foi a grande promessa ruralista naquele “debate”: o Brasil entregava as regras de proteção ambiental e os produtores rurais entregavam um cadastro. Só o Brasil entregou.
Para acessar o PSR e receber ajuda do governo, um produtor também não precisa fazer o CAR. Basta uma certidão negativa de débitos com o governo (CADIN). Não sabemos se o nosso segurado segue as regras mínimas da lei da água, mas financiamos o seu seguro contra a seca.
Com um olhar mais distante, o que o Congresso fez em 2012 foi validar o velho modelo colonial de uso e ocupação do território que rejeita a mais singela noção de planejamento, baseada na força e na truculência. Moro, Xico e o Agro propõem uma nova aposta nesse modelo. Fôlego para o expansionismo tresloucado e amparo estatal na hora de pagar a conta. É a renovação da confiança no velho Brasil que nos trouxe até aqui e é também uma escolha por colocar o estado mais uma vez a serviço de uma elite rural que se recusa a oferecer sua parcela de sacrifício enquanto se afirma o grande motor da economia. Tudo isso no exato momento em que o mundo enfrenta as consequências de uma relação predatória com o ambiente e cresce a pressão pelo sacrifícios de todos, em especial, dos mais ricos.
O Brasil não tem mais condições de carregar o Agro nas costas, senhores.
O PSR alcançou a cifra de R$ 1,18 bilhão em 2021 e vem crescendo de maneira acelerada. Com tamanha campanha, em breve este único programa deve ultrapassar todo o orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que em 2021 foi de R$ 1,72 bilhão para todas as ações de proteção do meio ambiente.
Os últimos sete anos foram os sete mais quentes já medidos em mais de um século e possivelmente serão mais frios que os próximos 7 anos. O Agro precisa se adaptar urgentemente com base na ciência, como o fez há 50 anos quando a Embrapa iniciava seus trabalhos com uma variedade de soja para o Cerrado.
Seguro não é proteção, sr. Moro. Proteger contra uma ameaça é prevenir. E sem cuidar das florestas não vai ter seguro rural que nos salve e nem expansão de lavoura que dê conta de mitigar o desperdício de terras e recursos. Estamos acelerando um modelo que tem dado claros sinais de esgotamento e nos legando crises de abastecimento, de produção de energia e inflação.
Neste contexto, desconfio que mesmo o Código Florestal como ficou não poderá salvar a lavoura. O modelo das monoculturas é que precisa ser finalmente superado nas próximas décadas. Mas isso é papo para um outro governo. Para os próximos quatro anos, o desafio é botar o pé no freio e a cabeça na realidade.
Por: André Aroeira
Biólogo e mestre em Ecologia pela UFMG, trabalha com políticas públicas socioambientais