Comportamento agressivo de botos machos contra filhotes na Amazônia intriga biólogos
Os botos brasileiros são conhecidos como os “Embaixadores dos Rios da Amazônia”. Na América do Sul e na Ásia, há várias espécies deste animal, um golfinho de água doce, mas é em nosso país que que se encontra a maior população deles do planeta. A região da Floresta Amazônica é habitat de duas espécies destes mamíferos aquáticos: o boto cor-de-rosa (Inia geoffrensis), também conhecido como boto-vermelho, e o tucuxi (Sotalia fluviatilis).
Todavia, nas últimas décadas, pesquisadores perceberam um comportamento atípico dos machos do Inia geoffrensis em relação aos filhotes da espécie. Os adultos estão atacando os mais jovens, muitas vezes, ainda recém-nascidos.
Desde 2013, foram registrados cinco ataques na região da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas. Três deles resultaram em morte. Teme-se, entretanto, que o número possa ser muito maior, já que é impossível observar toda a extensão do Rio Solimões, grande parte dela com 2 quilômetros de largura.
A bióloga Vera Maria F. da Silva, coordenadora do Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia e do Projeto Boto e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), da Fundação Grupo Boticário, estuda esses animais há mais de quatro décadas. Ela explica que esse tipo de comportamento é visto em outras espécies de mamíferos, como leões, macacos e golfinhos, que chegam até a matar seus filhotes. Mas até então, não havia sido descrito algo parecido entre os botos.
No ano passado, ao lado de outros pesquisadores, Vera publicou um artigo científico sobre o assunto na revista internacional Behaviour. O Conexão Planeta conversou com a autora do estudo, que nos detalhou melhor os registros e o que se sabe até agora.
Que tipos de agressões têm sido percebidas?
Os botos machos são agressivos por excelência. Desde muito jovem percebemos esse comportamento de agressão e é comum observar marcas de mordidas fortes, de dentes, e ainda, sangue de brigas entre dois machos. E mais recentemente, como publicamos, de machos em filhotes da mesma espécie.
E essas agressões têm sido frequentes? Quantas já foram documentadas? E onde exatamente?
Não sabemos com que frequência essas agressões a filhotes ocorrem, mas documentamos cinco eventos e mais cinco necropsias de filhotes mortos com sinal de agressão, então uns dez registros num período de 20 e poucos anos. Parece pouco, mas também nessa vastidão de Amazônia, você estar no lugar certo, na hora certa, para visualizar um comportamento desse não é comum.
O estudo diz que “Foi verificado que para os botos não há vantagem evolutiva de induzir a fêmea a entrar logo em estro, porque os botos machos em idade reprodutiva andam juntos. Portanto, uma fêmea sexualmente receptiva atrairia a atenção de muitos pretendentes, nenhum dos quais poderia esperar acesso exclusivo. Esse comportamento sexual intenso confunde os machos sobre a paternidade dos filhos e, consequentemente, eles correriam o risco de matarem um próprio descendente”. Você poderia explicar melhor o que isso significa?
A reprodução dos botos é o que chamamos de promíscua, o que significa que vários machos copulam com várias fêmeas e vice-versa. Isso confunde saber quem é o pai. No caso de felinos, por exemplo, é bem conhecido que leões que brigam por territórios, quando controlam uma área, matam os filhotes e assim a fêmea fica na fase fértil novamente e ele pode copular para ter os seus próprios filhotes.
Mas no caso dos leões, macho e fêmea ficam juntos por mais tempo, o que não acontece com os botos, que não permanecem com as fêmeas por muito tempo. O que dizemos não ser vantagem é que quando um boto adulto macho mata um filhote, ele não sabe se o filhote era dele porque vários outros podem ter copulado com a fêmea também.
No nosso trabalho nós também verificamos que um dos machos que iniciou a agressão a um dos filhotes era meio-irmão dele, eles tinham a mesma mãe. Então qual seria a vantagem de um filho induzir a mãe a ficar fértil? Como trabalhamos com animais marcados e reconhecemos indivíduos, sabemos que não permanecem juntos por vários dias. Então como um macho pode garantir que matando um filhote, ele vai copular com aquela fêmea?
Há relatos de casos similares com botos de outros países?
O caso de infanticídio e ataque a filhotes é descrito em outras espécies de golfinhos marinhos. No mundo existem outras espécies de golfinhos de rios, que aqui chamamos de botos, na Amazônia, mas tanto na Índia, como no Nepal e no Paquistão, onde os de água doce ocorrem, não há relatos desses ataques.
Esse comportamento pode induzir a um declínio da população da espécie?
É possível se houver uma mortalidade de filhotes muito alta, mas isso é uma coisa que nós não temos como quantificar, todavia, podemos dizer que não é trivial. Poderia ser algum distúrbio profundo naquela população ou naquele grupo de animais para que isso acontecesse, não parece ser algo natural. Poderia existir um declínio caso a população fosse pequena.
Certamente para entendermos melhor esse comportamento precisamos de mais observações, mais eventos, e só com mais repetições que conseguiremos mostrar um quadro mais completo. Ou seja, seria muito mais quantificar esse comportamento porque o registro já está feito. Será necessário mais monitoramento e investigação.
Por: Suzana Camargo
Fonte: Conexão Planeta