Quilombolas do Maranhão sofrem ameaças de fazendeiro
No dia 18 de novembro, duas casas foram incendiadas nas comunidades quilombolas unificadas de Marmorana e Boa Hora III, zona rural de Alto Alegre do Maranhão (MA). Segundo os quilombolas, o empresário e fazendeiro identificado como Antônio Márcio de Sousa Oliveira, conhecido como “Márcio da Exata Magazine”, uma loja de móveis no estado maranhense, foi o mandante da ação criminosa que destruiu também o roçado onde a comunidade plantava alimentos como, milho, arroz, e palmeiras de babaçu, uma das principais fontes extrativistas das famílias que vivem ali. Ele nega as acusações.
No incêndio de uma das casas, havia uma mulher grávida de 6 meses, que passou mal. As famílias perderam tudo, incluindo objetos e documentos pessoais, e dependem da doação de cestas básicas. “Há muito tempo estamos à mercê desse homem. No dia 4 deste mês, os jagunços dele apontaram uma arma para o meu cunhado e agora ele fez esse ato criminoso, que foi queimar nossas casas. Queremos que tudo isso que está acontecendo com a nossa comunidade seja público e chegue às autoridades, e que nos ajudem”, afirma a trabalhadora rural Jessica dos Reis.
Em entrevista à Amazônia Real, Jessica relata que não teve prejuízos, por sorte, uma vez que não estava morando no imóvel e trabalhava em outra localidade. Mas ia ao local todos os dias para mantê-lo limpo. A trabalhadora rural diz se sentir constrangida e triste de ver todo o esforço de uma vida ser destruído por meio do incêndio, e pede que Antônio Márcio seja retirado das terras.
“É um sentimento que não se apaga nunca, a gente olhar para nossa casa e ver que tudo aquilo que tinha vontade de ter foi destruído por um criminoso. Queremos ele fora da nossa comunidade para nos deixar em paz”, diz Jessica. Ela lamenta ainda a destruição de um patrimônio. “Meus filhos estão sentindo uma dor por ver a casa que eles nasceram e foram criados queimada, as crianças sentem mais que a gente.”
Os moradores da comunidade registraram boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia Civil de Alto Alegre do Maranhão nesta quarta-feira (23). Segundo Edimilson Costa da Silva, secretário de políticas agrárias da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema), a instituição acompanha de perto a situação de violência em Alto Alegre do Maranhão e uma equipe será deslocada para o território ainda nesta semana. “Vamos averiguar a situação, prestar solidariedade às famílias impactadas, além de reafirmar nosso compromisso com as comunidades”, diz.
O fazendeiro Antônio Márcio, localizado pela reportagem da Amazônia Real, afirma que as acusações contra ele são falsas e que também registrou boletim de ocorrência contra as denúncias dos moradores. “Estou sendo vítima de várias acusações e tenho várias ocorrências feitas contra eles (moradores), e estou tomando providência”, declara.
Antônio Márcio afirma que os moradores colocaram fogo nas próprias casas para incriminá-lo e que ele não sabe como o fogo começou. “Recebi uma mensagem que me avisou sobre um princípio de incêndio e naquela hora eu não sabia se era na minha terra ou na do vizinho. Quando cheguei lá as casas estavam queimadas. Os moradores da comunidade me viram lá no dia do incêndio porque fui ajudar a tirar as coisas da casa”, conta.
Território ancestral ameaçado
Desde que chegou ao território, em maio, Antônio Márcio de Sousa Oliveira acabou com a paz dos moradores de Mamorana e Boa Hora III. Acompanhado de vários homens desconhecidos em caminhonetes e tratores, o empresário e fazendeiro invadiu o terreno sob a alegação de que teria comprado a área. Ele tem proibido os quilombolas do Maranhão de trabalhar na terra, denunciam os moradores.
De acordo com Raimunda Nonata Costa da Silva, líder do território quilombola e presidente da Associação dos Produtores e Produtoras Rurais dos Povoados Marmorana e Boa Hora III, o fazendeiro fez o cercamento das terras, desmatou ilegalmente e proferiu graves ameaças contra os trabalhadores rurais quilombolas do Maranhão, inclusive com a presença de homens armados e uso de drones. Segundo os quilombolas, ele destruiu ainda as fontes de água dos moradores, que hoje usam água de um açude destinado a cavalos e bois.
“Esse ano fomos impedidos de trabalhar na nossa terra, onde nascemos e fomos criados, ele tomou de conta de tudo. No final de outubro, quando chegamos na roça, ela estava queimada. Mas a gente foi tentar aproveitar a roça assim mesmo e tinham drones nos espiando. A situação é complicada, ele desmatou quase tudo, derrubou palmeiras de babaçu, e tudo isso com homens armados dentro”, relatou.
Em 18 de outubro, uma ação integrada entre a Polícia Civil e a Polícia Militar do Maranhão, com apoio da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), flagrou desmatamento ilegal de 73 hectares de mata nativa e de palmeiras de babaçu, realizado por Antônio Márcio, que por não possuir a licença de autorização de supressão vegetal, foi preso em flagrante pelos crimes ambientais. Ele pagou uma fiança no valor de 30 mil reais e saiu em liberdade.
“Eu fui até a delegacia prestar esclarecimento, pois se tratava não de desmatamento, e sim de uma limpeza de pasto. Lá era uma fazenda e quando eu comprei as pastagens estavam deixando de ser limpas e isso nós estamos esclarecendo para o órgão responsável”, justifica o fazendeiro à Amazônia Real. Em setembro, Antônio Márcio requereu à Sema a licença única ambiental para desenvolver atividades agrossilvipastoris na Fazenda Marmorana (processo nº 188433/2022).
A agência procurou a Polícia Civil do Maranhão e a Sema para saber se há uma investigação dos casos relatados, mas até o momento não obteve resposta.
Derivaldo Brito, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Alto Alegre do Maranhão, afirma que as ameaças contra os quilombolas se tornaram insustentáveis após a operação da Sema. “Mesmo após a prisão ele voltou para o território. A situação não é muito boa para eles, mas os moradores estão lá dentro resistindo e as autoridades não se manifestaram até agora”, denuncia.
Falta regularização
Territórios quilombolas reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares desde 2007, as comunidades Marmorana e Boa Hora III existem há mais de 100 anos, formadas por cerca de 30 famílias de trabalhadores rurais. Elas se dedicam a atividades como a coleta extrativista, especialmente a extração do coco babaçu das matas do entorno, e agricultura familiar de forma coletiva. O uso comunitário das terras pelas comunidades quilombolas do Maranhão sofreu episódios de violência ao longo dos anos, sobretudo por pessoas que adquirem títulos de propriedade das terras, e que impedem o acesso às áreas de caça, coleta e plantio, indispensáveis ao sustento das famílias tradicionais.
Para os moradores, o processo de titulação da terra, que tramita junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2006 e ainda não foi finalizado, contribui para o aumento de invasões e situações de violência. “Se a nossa terra fosse regularizada, não estaríamos sofrendo as consequências gravíssimas que estamos passando nas mãos de grileiros de terra. Queremos a titulação para poder viver em paz e livres”, diz Raimunda Nonata.
Brito conta que o empresário e fazendeiro Antônio Márcio se apresenta como dono da terra, mas os documentos estão em nome de outra pessoa, que nunca invadiu e esperava uma desapropriação dos moradores por parte do Estado. “A desapropriação nunca aconteceu, uma vitória gerada pela luta dos moradores em relação ao território. No entanto, ele decidiu comprar e invadir a área mesmo sem documentos legais, apenas com uma procuração”, disse.
O presidente da STTR explica que estão aguardando o Incra concluir a segunda etapa do processo de legalização da terra quilombola. “O primeiro estudo foi feito e aprovado, mas não terminaram o trabalho de documentação do território. O processo está parado porque o governo diz que não tem recurso para legalizar”, afirma.
Movimentos e organizações sociais do Maranhão divulgaram na quinta-feira (23) uma nota pública denunciando os ataques sofridos pelo território quilombola. No documento se pede que “o governo do estado do Maranhão e o governo federal adotem medidas para proteger a vida, a saúde e a integridade pessoal de todos os moradores do Território Quilombola Boa Hora III e Marmorana, Alto Alegre do Maranhão”. Pede também a conclusão do processo de titulação quilombola, o início de uma investigação ampla dos crimes cometidos contra os quilombolas do Maranhão, doação de cestas básicas para as famílias que perderam tudo em razão do incêndio e a reconstrução das casas incendiadas.
Por: Nicoly Ambrosio
Fonte: Amazônia Real